quinta-feira, 9 de julho de 2009

O FADO ROCK'n'ROLL - artigo do Dr. V. Vasconcelos Raposo na HOMEM #243

Acaba de chegar às melhores livrarias – disfarçado por detrás da reprodução de um quadro que, em vez de gritar, murmura – uma colectânea de Contos de Fados. “Fados”, aqui, são variantes do Destino, e o organizador da edição, por conta da Fundação Almeida Garrett, comprou os direitos ao uso da palavra turca “Kismet” (derivada do árabe e com salvo-conduto de circulação em língua inglesa para designar “destino”) para sublinhar a relativa unidade do conjunto.
Passada a capa, que omite tudo mas parece prometer uma estética serena e depurada, o livro guina para a pipoca logo na epígrafe de abertura (ainda para mais indecifrável). O citado é non other than o orelhudo verde da hollywoodesca Guerra das Estrelas mas, como se isso não fosse desrecomendação suficiente, ainda por cima a suposta atribuição está manifestamente errada: o único filme da série em que o grasnar do Master Yoda não atenta contra a língua de Shakespeare é logo o que aparece como fonte.
O dito “Manual de Instruções” minora um tanto essa má impressão. Embora pareça mais um Relatório & Contas, faz um aceitável inventário do estado da contística portuguesa e das suas instâncias de consagração, com o óbvio propósito, igualmente patente na invocação de Ricardo Reis em todas as sucessivas epígrafes (das sete quinas, várias mancas, em que se arrumam os textos), de inscrever o resultado do “estágio de Estói” (o retiro onde foram produzidos os contos) na tradição nacional. Esforço baldado, diga-se, porque sendo esses, quase sem excepção, variantes mais ou menos curiosas da velha fórmula do twist in the tail, de venerável tradição americana (O Henry) e britânica (Roald Dahl), quase nada há neles que tenha a ver com a riquíssima variedade temática e estilística da prosa curta nacional. O aparato de erudição, levado a meia dúzia de páginas de notas cerradas, resulta inglório para o efeito pretendido: por muito que o organizador tente, o que está a seguir não é o nosso fado – é, quando muito, rock’n’roll. E, assim, sobra a dúvida sobre o acerto do patrocínio da Fundação Almeida Garrett a este projecto, tendo em conta que a sua área privilegiada de intervenção – e propósito estatutário – é “a preservação e revalorização das genuínas tradições da cultura portuguesa”. Salvo melhor opinião, fazer importação de modelos alheios, ainda por cima de contar histórias, é hoje, mais do que um anacronismo, um disparate: como muito bem dizia o João Tordo na Ler (Outubro de 2008, p. 25), não há “muita paciência para os puros contadores de histórias”. E aqui é o que há.
O livro traz um Regulamento (do Grande Prémio Almeida Garrett do Conto Português) e, como em todos os Regulamentos, o Leitor que o evitar não perderá grande coisa, se não pretender procurá-la.
Só depois, e já vamos na página 33, vêm os contos – 23 deles, com 23 notas biográficas dos respectivos AA. e comentários (às vezes impertinentes) dos ditos. No Posfácio, Luísa Costa Gomes duvida, por junto, da bossa literária – ou, como ela nota, atendendo à natureza das histórias, “intriguista” – da horda reunida em Estói, e concretiza: O Colar da Serpente, o magnum opus de Helena Vieira Onofre (que lhe teria valido a pré-selecção) é “inâne” (subscrevo) e o Bernardo Jusarte, barman em Brooklyn, outro dos presentes na obra colectiva, era muito melhor a misturar o vermute do que a tomar nota dos pedidos da mesa 5 (idem). A metamorfose de ambos em autores de histórias passáveis é um mistério. Suspeita ela que haja nisso mão do já referido organizador da obra, uma éminence grise de nome Pedro Manuel Calvete. Sobre isso não alvitro, mas noto que, sendo ele um razoável conhecedor de História e Geografia, não teria provavelmente cometido o erro elementar de situar em Singen-Hohentwiel, no imediato pós-guerra, “O Futuro nas Coisas” (uma das histórias): estando a cidade em plena zona de ocupação francesa, só por crassa ignorância podiam ser oficiais americanos a figurar nela…
Depois, há a disparatada ideia – suponho que é o que se chama interactividade – de levar o leitor a encontrar umas mensagens cifradas no texto e, ainda pior, de o levar ao voto. Não nas eleições dos príncipes que nos governam, o que sempre teria um propósito alegadamente cívico, mas no conto preferido. Há até um boletim de voto, RSF (que pode ser tornado nominal, supostamente para prolongar depois a “interactividade” com o (e)leitor), em cada exemplar do livro. Como se alguém, no seu perfeito juízo, fosse ler todas as propostas apresentadas a sufrágio – ainda por cima em ano tri-eleitoral, em que há tanta mais ficção para ler.
Em suma: há em tudo isto algo que não bate certo. Mas, já se sabe, as coisas nunca são o que parecem. Ou melhor, como referiu Don Juan Manuel, citado no livro: “Todas as cousas ou nos parecem boas e são boas, ou parecem más e são más, ou parecem boas e são más, ou parecem más e são boas.

1 comentário:

Anónimo disse...

Cotejei o texto aqui publicado com o original da revista e não conferem. Mas, pelo menos, a revista existe.
A Fundação é que parece que não: pelo menos não na net, onde (também) era suposto estar.
Já percebi que há "algo que não bate certo" - parece é que é tudo.