quinta-feira, 9 de julho de 2009

KIS quê? - artigo da Profª Drª Maria de Fátima Gil na HOMEM #243

Se livros que nos atraem mal os divisamos nos escaparates, este é um deles. Ficamos logo presos à capa – um belíssimo baixo-relevo de Domingos Loureiro –, surpreendidos por não vermos nenhuma das informações a que os leitores nestas coisas costumam ter direito: nem título, nem subtítulo, nem nome de autor... nada. Aproximamo-nos e observamos melhor... Confirma-se que são árvores... Mas é fogo aquilo, entre as ramagens? Ilusão de óptica ou voluntária mistificação?
Lá acabamos por encontrar o título, na lombada. Enigmático, fundindo o exótico e o familiar, brincando com a sedução de um trocadilho, Kismet (Contos de Fados) reforça a ambiguidade da capa, louva a perspicácia do leitor e promete-nos a leitura como jogo. E nós somos incapazes de resistir.
A Pedro Manuel Calvete, orientador e júri unipessoal da 1.ª edição do Grande Prémio Almeida Garrett do Conto Português, cabe apresentar, no prólogo, a iniciativa do “estágio de Estói”, com os seus desígnios, procedimentos e participantes. Começando por inventariar as colectâneas de contos publicadas em Portugal e os prémios literários existentes no país – com um rigor académico que não lhe permite esquecer sequer autarquias de pequena dimensão e ainda menores proventos –, Calvete vitupera a alegada desconsideração portuguesa por este género literário. É certo que, com tal resenha, preenche tantas páginas de notas como de texto propriamente dito, mas, em contrapartida, dá maior destaque aos outros objectivos da introdução: noticiar a 2.ª edição do Prémio – que decorrerá em novos moldes (para o que se publica o correspondente Regulamento) – e anunciar a possibilidade de participação do público na escolha do vencedor da 1.ª edição. Para isso, bastará que cada leitor preencha e envie à Fundação Almeida Garrett o postal já franqueado que acompanha a obra.
Ora, num mundo em que os autores se cansaram de ser simples funções textuais e num país em que o público tem tanta prática eleitoral, isto não causa grande surpresa. Mas talvez fosse altura de a Fundação se adaptar aos novos tempos e passar a utilizar a chamada de valor acrescentado ou a mensagem SMS.
Quanto aos 23 contistas da antologia, escolhidas a dedo entre o que Calvete chama “gerações de abertura fácil”, são verdadeiros achados. Cada uma das suas biografias tem material suficiente para inúmeras histórias, ou melhor: é em si mesma uma outra história, mais estranha e improvável do que a narrativa que a antecede, desafiando o leitor a imaginar a vida de tais figuras e colocando-o, nessa medida, na função de (co-)autor de ficções.
Ao contrário de Luísa Costa Gomes, que escreve um posfácio à obra, eu não conheço nenhuma destas personagens. Mas a confirmar-se o que a escritora diz sobre algumas delas, e a serem verdade os comentários dos próprios autores, Calvete deve ter tido um trabalho insano. Não se tratou apenas de seleccionar os interessados, sugerir o tema, definir o modelo à luz da short story anglo-americana e fazer com que cada aprendiz de escritor introduzisse no seu texto uma pointe, uma reviravolta estranhante. Dado que, com certeza, nem todas estas figuras possuem o domínio elegante da língua portuguesa que os contos revelam, o mentor do estágio deve ter observado cada palavra, burilado cada parágrafo, fomentado a reescrita vezes sem conta. Do seu esforço resultou, todavia, uma obra surpreendente, em que contistas promissores, como Tiago Ribeiro Botelho Ferreira, emparceiram com diletantes das letras, como o luso-brasileiro Octávio R. Raposo, e compradores de revistas cor-de-rosa, como a reformada Zinha. Por isso, não me pareceria nada de mais se o 1.º Grande Prémio do Conto Português fosse atribuído ao próprio Pedro Manuel Calvete.
É cedo ainda para traçar o destino de Kismet, mas o livro provoca-nos até à última página. A complexidade do mundo talvez já não se deixe cingir pelas grandes diegeses, mas, como observa Paul Ricoeur, o tempo humano é sempre tempo narrativo. As pequenas histórias podem organizar pedaços do caos, ordenar a grande ficção da existência que cada um constrói para si. O compilador destas narrativas tem o mérito de nos desafiar com um livro multifacetado sobre o enigma do fatum – e nem precisava das epígrafes de Ricardo Reis para nos orientar e sublinhar o poder do destino.
Já agora, também não precisava de tantas infelizes gralhas, a que não quero chamar erros. Ensombra o texto encontrar continuamente vogais e consoantes num tipo diferente de letra, ou descobrir, mesmo no índice, caracteres extemporâneos em itálico e negrito. Mas, vendo bem, os caracteres surgem exactamente assim nos títulos dos contos! Mensagens cifradas? Jogo no jogo? O que dizia eu sobre mistificação?

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