quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Colchete, Carla

Nasceu em Aveiro, a 27 de Fevereiro, e vive em Zurique, onde lecciona Sânscrito e Copta. O seu primeiro conto foi publicado na secção Policiário do jornal Público (P2).

1 comentário:

pmc disse...

A CATÁSTROFE
Autor: Carla Colchete

– Ora boa tarde.
– Boa tarde.
– Se aqui vendem selos, também devem comprar, não é?
– Compramos sim, senhor.
– Tenho aqui uns, do tempo dos reis… Que é que acha? Valem alguma coisa?
– Valem, valem sempre. Se é muito ou pouco, mostro-lhe já no Catálogo, mas não se fie muito nos preços, nós estamos a vender por metade do que aí está… Ora bem, o que é que tem aí? D. Luís carmim, lilás, verde… Só tem D. Luís, não é?… Cá está: estes valem, teoricamente, 36 euros cada… quando aparecem assim aos pares valem 108 euros…
– Cada?
– Não, o par. Está a ver este símbolo? O meu miúdo diz que é da batalha naval… Quer dizer que dois selos ligados valem cerca de três vezes mais do que um sozinho.
– E esse sinal aí?
– É quando são quatro: valem cerca de oito vezes mais do que só um… mas, vendo bem, é só o dobro, porque são quatro selos, não é? Com o envelope ou o postal original é que o valor do selo aumenta para o quádruplo…
– Para o quádruplo? Boooh! E estive eu toda a manhã a cortar selos dos envelopes… Menos neste…
– Dois D. Luís carmim? São dos que valem menos. Olhe: perdeu o senhor e perdi eu. Mas é a ordem natural das coisas: o mais importante é sempre o que não sabemos.
– E a seguir vai dizer-me que as cartas também valem dinheiro, não é?
– Quando diz cartas refere-se a…
– A correspondência, ao que estava dentro dos envelopes…
– Depende…
– Depende de quê?
– Olhe, de quem escreve, de quem recebe, do que nelas se diz… já tenho comprado algumas mais caras do que os selos… não me diga que…
– Nem me fale. Até já estou a ficar mal disposto. Queimei-as todas… menos a do que lhe mostrei, em que trouxe os selos… escolhi-o porque era o maior e tinha um timbre… ´tá a ver? Consulado português de Newcastle…
– Dá-me licença que a leia?
– Faça favor… eu não percebi nada dos gatafunhos.
– “Newcastle, 10 de Dezembro de 1878”… É dirigida a um “Meu caro Vaz”… Tem ideia de quem seja?
– Não sei, um antepassado qualquer da minha mulher… ela é que é Vaz, pelo lado da mãe, e as cartas e os papéis estavam no cofre da avó dela… E nesse envelope só consegui perceber isso: “Vaz”.
“Como estipulado, aqui lhe mando a versão… i… irredutível que tanto o exasperou. Confio que, não tendo eu seguido o seu conselho de me aquecer com essas folhas, não as faça chegar à sua lareira em meu lugar – pelo menos, não antes de o Senhor Ministro lho determinar.»
Se, como julga, não puder obter o … Nibil… não, o Nihil Obstat, à sua publicação, conto que o Ministério tenha a grandeza de, proibindo-me a mim como Carlos X proibiu Victor Hugo, me pagar esta Batalha perdida, como o rei pagou ‘Marion Delorme’. Enfim, não como se paga em França, mas em trocos, como se paga em Portugal.
Um abraço do seu agora devedor José Maria.”
– Acha que vale alguma coisa?
– Nem imagina… e o livro a que a carta se refere?
– Livro? Não havia livro nenhum. Havia um maço de folhas manuscritas, já borratadas, atadas com um cordel. Mas estavam coladas umas às outras, bolorentas, com os cantos negros… Foram as primeiras a ir para a lareira – e olhe que custaram a arder… Era uma coisa de guerra, uma batalha qualquer…
– A Batalha do Caia.
- Isso mesmo… Espere aí: como é que sabe?

A pergunta é exactamente essa: como é que ele sabia? E sabendo ele isso, como é que sabemos nós que a autora quis que a história se revelasse como uma efabulação e não como um relato presenciado de uma realidade irónica (como a realidade sempre é)? O que é que falha?

{ publicado na secção “Policiário” do jornal “Público” de 25 de Janeiro de 2009 }